Essa postagem é uma re-edição de um texto anteriormente escrito sob minha autoria - uma primeira tentativa de aplicar teorias bioquímicas e moleculares no encontro da razão em aspectos relacionados à vida como a conhecemos hoje - a menos que tenhamos uma visão criacionista sobre a origem das espécies a humanidade e a vida como a conhecemos hoje representa apenas a última milésima parte de todo o período cronológico desde a origem da vida em si.
Em suma, essa é a pré-estruturação de uma teoria capaz de indicar como a desigualdade social pode ser reflexo dos desdobramentos de uma estratégia evolutiva. Essa estratégia é bem demonstrada pelo modelo de quase-espécie viral. Uma vez que os vírus se apresentam como uma das maquinarias moleculares mais simples capazes de se auto-replicar com diversidade genética, a evidência fica mais clara.
Parte I: Da Evolução
Um dos maiores desenlaces da biologia moderna tem sido a busca pela unificação da origem da vida, reflexo do modelo originado pelos princípios de Charles Darwin relativos à origem das espécies e hoje aceita unanimemente pelos biólogos.
Aproximadamente 30 anos atrás um dos mais famosos microbiologistas norte-americanos, Carl Woese, descreveu a teoria do último ancestral comum universal, LUCA (last universal common ancestor). Tal teoria é embasada estatisticamente pelas chances da existência de um ancestral comum universal serem muito mais que bilhões e bilhões de vezes, na ordem de 10 elevado a 3489, superiores às chances de um modelo multi-ancestral.
Hoje a teoria, já repercutida em inúmeros grupos de pesquisa responsáveis pela adição e amadurecimento de idéias relacionadas, assume algumas novas definições tais como a de último estado comum universal, LUCAS (last universal common state). Estudos indicam que este estado seja representado por uma complexa comunidade de formas de vida protoeucariotas (ancestrais aos eucariotos modernos) de genoma composto de RNA.
Parte II: Da Individualidade
Por que estado comum e não ancestral comum? Por que a composição genômica seria de RNA e não de DNA? As respostas para essas duas perguntas justificam a condição necessária para a origem da individualidade orgânica.
Para entender essa condição é necessário compreender como se prevalece a evolução e perpetuação de organismos de genoma de RNA. Um dos modelos mais claros que leva a essa compreensão é o modelo chamado Quasispecies (quase-espécie). Este modelo descreve, nas condições darwinianas e seguindo leis físico-químicas, como entidades auto-replicantes se comportam.
Primeiramente deve-se estarem claras as diferenças entre organismos de genoma RNA e DNA. A mais relevante diferença entre eles consiste na habilidade do DNA corrigir os erros gerados em sua duplicação, enquanto o mecanismo que dá origem a novas moléculas de RNA (transcrição) não é capaz de corrigir os erros gerados na produção. Técnicamente, dizemos que a Polimerase DNA dependente possui atividade de revisão e correção, enquanto a Polimerase RNA dependente não. O fato da replicação do RNA gerar erros e consequentemente maior potencial mutante é a base do modelo de quasispecies viral.
Vírus de RNA seguem nitidamente o modelo de quasispecies, especificamente chamado de quase-espécie viral. Este modelo descreve que, ao estabelecer uma infecção, o vírus não assume uma forma única de genoma. Teoricamente poderíamos esperar que o vírus prevaleça na forma mais adaptada, entretanto o agente infectante se comporta não como indivíduo, mas como uma quase-espécie que é favorecida em sua totalidade pela existência de uma gama de variantes do genoma mais bem adaptado, que em suas co-existências favorecem-se umas as outras.
Este é o modelo mais elucidativo para a individualidade e cooperação entre diferentes partes que compõem uma comunidade ou espécie. Segundo a quase-espécie viral, cada vírus se comporta como um indivíduo portador de deficiências e qualidades, em um sentido amplo. Estas diferenças, em um sentido mais estrito, tornam cada um deles mais apto a infectar um sistema ou tipo celular específico. Este fato favorece que a quase-espécie, como um todo, esteja apta a infectar os diversos setores de um organismos de acordo com as suas singularidades, ao mesmo tempo que aumenta a inter-dependência entre as diferentes formas. Em outras palavras, o modelo descreve que a infecção gerada por um vírus prevalece pelo conjunto de diferentes formas que resultem na maior taxa replicativa e não na forma que resulte na mais bem adaptada. Assim, nota-se que o conceito de maior adaptação é totalmente relativo ao micro-ambiente em questão e que uma grande adaptação a um ambiente significa baixa adaptação a um segundo ambiente.
Ao mesmo tempo que a individualidade favorece a predominância da quase-espécie pela sinergia gerada pela cooperação, ela também favorece a sobrevivência pela individualidade. Um grupo que compartilhe uma característica em comum pode ser identificado e eliminado por essa característica, entretanto um grupo diverso torna-se complexo demais para ser identificado e eliminado por um único mecanismo. A evolução está diretamente ligada com a capacidade de sobrevivência e predominância de todas e quaisquer espécies vivas.
Parte III: Das Relações sociais
A sociedade é um agrupamento de indivíduos capazes de estabelecer relações inter-individuais. Tais relações favorecem a troca de conhecimento e cooperação, gerando a condição que hajam especialistas capazes de romper fronteiras cada vez mais distantes do conhecimento intuitivo.
A sociedade funciona como o modelo viral descreve a quase-espécie, cada indivíduo em suas singularidades tem o dever de exercer funções específicas, que de maneira cooperativa, dará sustentação à sociedade. Uma sociedade, por sua vez, irá predominar-se sobre outras de acordo com a capacidade dos seus indivíduos de agirem em conjunto com potencial tecnológico, econômico, político e cultural.
Da mesma forma, as diferenças entre etnias, culturas e conseqüentemente modos de se viver, são cruciais para o desenvolvimento da sociedade e prevalência do modelo ao se deparar com situações adversas. A singularidade dos indivíduos proporciona que por mais que alguns não se adaptem, outros irão e a comunidade se perpetuará como um todo, independente do momento em questão.
Parte IV: Da Desigualdade Secular
Em sua justificativa, o modelo de quase-espécie viral descreve de maneira holística a prevalência de um conjunto heterogêneo de indivíduos sobre a forma predominantemente mais adaptada ao macro-ambiente em questão. De maneira análoga podemos interpretar os diversos fenômenos sociais, assim como a sociedade em si.
Pesquisadores indicam que por volta de 4.4-4.0 Ga (giga-ano ou bilhões de anos) atrás, se reuniram as principais condições necessárias para o estabelecimento das primeiras formas de vida, complexos auto-replicantes. Organismos unicelulares fossilizados com estruturas semelhantes às cianobactérias foram encontradas em rochas formadas há 3.5 Ga.
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| Bada, J L (2004). How life began on Earth: a status report. Earth and Planetary Science Letters, v.226, p.4. |
O quão distante estamos destas primeiras formas de vida? Os primeiros hominídeos datam por volta de alguns milhões de anos atrás. Assim, apenas na última milésima parte de todos os 4 bilhões de anos marcados pela evolução progressiva das espécies, na hipótese mais prévia, pode ser datado o nascimento da forma mais primitiva de sociedade humana. Durante quanta parte de nossa história, desde a origem da vida, fomos guiados e influenciados por noções simples, que hoje se mascaram dentro de conjunturas complexas?
Alguns, senão a maioria, dos instintos básicos humanos são facilmente explicados por desdobramentos de estratégias evolutivas. Da mesma forma, os diversos modelos de comportamento de organismos devem compartilhas características básicas estruturais comuns, de existência e de estratégia para sobrevivência. A desigualdade, seja causa ou conseqüência da individualidade, é claramente uma estratégia predominante utilizada pelas mais diversas espécies. Desvendar de maneira análoga agentes auto-replicantes mais simples como vírus, podem trazer insights devastadores acerca dos diversos processos em que se estabelecem as sociedades orgânicas. Fica sendo esta a justificativa secular para a desigualdade.
Pósfacio
Apesar de tais semelhanças básicas compartilhadas por todas as formas de vida, a sociedade, ou quase-espécie humana, apresenta uma característica especial que proporcionou nossa evolução recente de maneira diferenciada. Esta habilidade é a capacidade de comunicação.
Entender é parte do processo de transformar. Uma transformação sustentável deve suprir todas as antigas demandas. A utilização da informação nos permite pensar como sociedade, extrapolar as capacidades intuitivas de cada indivíduo e avançar em um contexto não mais estrategicamente individual.
A dúvida é só o primeiro passo. Talvez mais tarde até mesmo seja esquecida.

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