Hoje, um artigo de IA finalmente me fez "virar a chave". E do jeito que eu mais gosto: conectando tudo e me levando de volta à minha origem como bioquímico. Reforçando algo que sempre acreditei: a graduação em Bioquímica talvez seja o melhor bacharelado para se ter uma base de pensamento científico sólido e que se aplica a qualquer área do conhecimento.
E me lembrou de uma verdade que tomei para mim como fundamental: as soluções da natureza, moldadas por bilhões de anos de evolução, são um compêndio de inovação muito maior do que qualquer coisa que possamos inventar do zero.
Antes de mais nada, precisamos de um contexto: Daniel Kahneman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2002, em seu livro best-seller "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar" propõe que nossa mente opera usando duas formas, ou sistemas, de pensamento.
O sistema 1 é o Piloto Automático, o nosso modo de pensar rápido, intuitivo, automático e que não exige esforço. Ele funciona com base em padrões, experiências passadas, emoções e é o sistema que está no comando a maior parte do tempo. O sistema 2 é o Pensamento Lento e Deliberado, nosso modo de pensar lento, analítico, lógico e que exige esforço consciente. Ele é ativado quando encontramos um problema complexo, algo inesperado ou quando precisamos concentrar.
O Problema Fundamental: Limitações do "Pensamento Rápido" (Sistema 1) nas IAs Atuais
Saiu um artigo recente no campo de IA que está causando discussões interessantes. Podemos ensinar uma IA a "pensar devagar" de forma nativa? E a resposta veio com os Energy-Based Transformers (EBTs). A sacada é genial. Em vez de apenas gerar uma resposta, o modelo aprende a ser um verificador. Ele atribui uma nota de "Energia" para qualquer par "pergunta + possível resposta". Respostas boas e coerentes têm baixa energia e respostas ruins têm alta energia.
E aqui a Bioquímica e a Biomimética entram em cena.
A biomimética é uma área que estuda as soluções e estratégias da natureza (“bio”) para criar novas abordagens, muitas vezes imitando ("mimesis") a forma como a evolução natural moldou respostas ao longo de mais de 3,8 bilhões de anos. Esse processo evolutivo modelou a natureza como a conhecemos hoje, a partir de inúmeras interações ao longo desse vasto período.
E o que isso tem a ver com IA e os EBTs?
O novo artigo de Gladstone (2025) evolui um conceito fundamental de Yann LeCun (2006), e a inspiração é pura biomimética. A estratégia dos "modelos baseados em energia" imita um processo que acontece em nosso corpo quatrilhões de vezes por segundo. Quando o código genético cria uma proteína, ela nasce como uma "linha" de aminoácidos. Para funcionar, essa linha precisa se dobrar em uma forma 3D complexa e perfeita. Como ela encontra o caminho certo em meio a trilhões de possibilidades? Buscando o estado de menor energia, o seu ponto de máxima estabilidade.
Pois bem, o processo de um EBT é o mesmo! Ele começa com uma resposta aleatória (a "proteína linear") e, de forma iterativa, vai ajustando-a para "descer o gradiente de energia", até encontrar o "vale": a resposta mais estável, lógica e compatível.
Os resultados são impressionantes:
Os EBTs são ao menos 30% mais eficientes no pré-treinamento que os Transformers tradicionais no tratamento de dados em escala.
O desempenho melhora em até 29% quanto mais "tempo" (passos de otimização) o modelo tem para pensar.
De forma emergente, eles desenvolvem uma noção de incerteza. Para problemas complexos, a energia demora mais a baixar, como se o modelo "soubesse que não sabe".
Os modelos pensarem com a abordagem de sistema 2 melhora a generalização: As capacidades de "pensar" dos EBTs (alocar mais computação e auto-verificar predições) não só melhoram o desempenho, mas também levam a uma generalização aprimorada, especialmente para dados fora da distribuição (problemas novos e desconhecidos).
Isso ataca um problema central das IAs atuais, destacado por muitos especialistas: a arquitetura dos LLMs está chegando a um limite para o raciocínio profundo. Os LLMs são ótimos geradores, mas péssimos verificadores do que eles mesmos produzem. Os EBTs invertem essa lógica. Eles aprendem a verificar primeiro, construindo uma base muito mais robusta para o raciocínio. Em vez de decorar o caminho, eles aprendem a reconhecer o destino correto, não importa por onde comecem.
Estamos vendo uma potencial mudança de paradigma. O futuro da IA pode não ser apenas sobre mais dados e computação, mas sobre a adoção de princípios eficientes, inspirados pela própria natureza. moldados em bilhões de anos de evolução.
E para quem chegou até aqui, a parte mais interessante: os enigmas do campo de IA são velhos conhecidos da Bioquímica.
Para isso vou trazer dois exemplos, entre vários, que podemos aproveitar das ciências biológicas como inspiração para a evolução dessa nova fronteira do pensamento mais complexo em IA.
Primeiro, o Paradoxo de Levinthal: como uma proteína encontra sua forma perfeita (nativa) em frações de segundos, se uma busca aleatória por todas as configurações possíveis levaria mais tempo que a idade do universo?
Para se ter uma ideia da escala, imagine uma proteína comum no nosso corpo, com cerca de 400 'elos' (aminoácidos). Agora, vamos supor que cada um desses elos pudesse se dobrar em apenas três posições diferentes – uma simplificação enorme. O número total de "desenhos" 3D possíveis para essa única proteína seria um número com mais de cem zeros. Se ela tivesse que testar cada uma dessas formas, uma por uma, mesmo em uma velocidade altíssima, levaria um tempo infinitamente maior que a idade do universo. E, no entanto, a natureza faz isso em menos de um segundo, provando que a busca não é aleatória, mas sim guiada e incrivelmente eficiente.
Se a busca não é aleatória, então, como ela é feita? A resposta das ciências biológicas tem evoluído ao longo desses anos de pesquisa. A visão inicial era de um caminho único e preferencial, uma sequência fixa de passos. Hoje, a ciência entende o processo de forma muito mais complexa: um funil de energia. Em vez de uma rota fixa, a proteína "desliza" por uma superfície de energia que a guia naturalmente para o estado de menor energia. Não importa por onde ela comece a "cair", a topografia do funil garante que ela chegue ao destino certo.
Segundo, as "Armadilhas" de energia (como evitar Mínimos Locais): uma proteína pode "cair" em uma forma estável, mas errada. Para sair de lá e encontrar a forma perfeita (o mínimo global de energia), ela precisa de ajuda ou de um "empurrão" energético. A figura no banner do post ajuda a entender um pouco melhor esse dilema.
A jornada da proteína pelo funil de energia não é sempre um "tobogã" perfeito. A superfície tem vales menores, como bolsões, onde a proteína pode se acomodar em uma forma estável, mas errada. Se ficar presa ali, ela se torna inútil ou até tóxica. E uma vez que ela caia em mínimos locais, sair desse estado exige um dispêndio de energia, permitindo que a conformação saia de um bolsão de mínimo local em busca do mínimo global, ou seja, sua forma funcional e nativa.
Então, como a natureza a resgata? Ela tem suas próprias "equipes de socorro": as proteínas Chaperonas. Essas guardiãs moleculares usam a moeda de energia da célula (ATP) para "sacudir" a proteína presa, dando-lhe um empurrão para fora da armadilha e uma segunda chance de encontrar o caminho certo para o mínimo de energia global – a forma perfeita.
Esse dilema é idêntico ao desafio dos "mínimos locais" em IA, e a solução é análoga. Técnicas usadas nos EBTs, como adicionar um pouco de ruído ao processo de otimização, funcionam como as chaperonas: elas dão um "empurrão" no modelo, impedindo que ele se contente com uma resposta boa, mas não ótima, e o incentivam a continuar a busca pela solução ideal.
A inteligência é artificial, mas as estratégias são naturais
Isso nos leva a uma conclusão que pessoalmente acho maravilhosa. O próximo grande salto da IA pode não vir de "geradores" de respostas cada vez maiores, mas de sistemas que, como a natureza, aprendem a "verificar" e otimizar. O manual de instruções para uma inteligência verdadeiramente eficiente já existe, e ele não foi escrito em código, mas sim no DNA. Estamos apenas começando a aprender a lê-lo. O caminho para a tão hypada Inteligência Artificial Geral (AGI) talvez esteja escondida em segredos que a Natureza já desvendou ao modular e evoluir os seres vivos em seus mais de 3.8 bilhões de anos e evolução interativa e iterativa.
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Referências
A descrição do funcionamento do EBT, os resultados de eficiência e o conceito de "pensar mais": Gladstone, A., et al. (2025). Energy-Based Transformers are Scalable Learners and Thinkers. https://doi.org/10.48550/arXiv.2507.02092
A fundamentação teórica sobre "energia" como medida de compatibilidade, que permite a analogia com a bioquímica: LeCun, Y., et al. (2006). A tutorial on energy-based learning. https://www.researchgate.net/publication/200744586_A_tutorial_on_energy-based_learning
Uma visão ampliada do Paradoxo de Levinthal, considerando interações de curto e longo alcance em processos biomoleculares: Melkikh, A.V., & Meijer, D.K.F. (2020). On a generalized Levinthal's paradox: The role of long- and short-range interactions in complex bio-molecular reactions, including protein and DNA folding. BioSystems, 192, 104123. https://doi.org/10.1016/j.pbiomolbio.2017.09.018